quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Quarta feira, 30 de Janeiro


Hoje, depois do almoço, a Vó pediu que eu mostrasse a nossa foto na Bienal do Livro. Ela ia reparando em cada detalhe de você e, o que não dava pra ver, me perguntava. “E o olhinho dele, é pequeno igual ao do seu pai?” “Esse cabelinho liso... mais claro que o seu, né?” “Olha só a mão dele, meu Deus!”. E depois passou um bom tempo fazendo o que ela faz de melhor (depois dos biscoitos, dos bolos e das esfirras): contou uma história.
Não sei se você se lembra dela, nem se ela já era tão “Vó” quando te conheceu, mas as histórias que  conta são sempre floreadas de detalhes minuciosos e muitas vezes irrelevantes. Desses quinze dias que ela passou aqui, acho que a história de hoje foi a única que eu realmente ouvi. A única cujos detalhes não me foram bastantes. A única que me deixou querendo saber mais. Ela me falou de você.
Qualquer dia desses ela caiu no assunto dos aniversários da família. E disse, muito contente, que se orgulhava de ter um filho, dois netos e um bisneto que nasceram perto de seu próprio aniversário: 12 de Fevereiro. Demorei um pouco para contar todos: o filho, meu pai; o bisneto, o único que ela tem. E os dois netos somos eu e você.
Com isso, eu me lembrei de que tenho muitas coisas pra te dizer. Talvez eu nunca termine de dizê-las, mas essa é uma boa oportunidade pra começar.
Acho que nenhum de nós vai saber realmente como foi que todas as coisas aconteceram para que hoje não seja um dia de bolo aqui em casa. Para que meus namorados tivessem ficado mais apreensivos nos primeiros almoços em família. Para que no natal os presentes embaixo da árvore precisassem de etiquetas com nomes. Para que eu tivesse ciúme de alguém. Enfim, para que o meu pai fosse nosso pai. Mas talvez essa seja a melhor parte de tudo.
Dizem que os irmãos a gente não pode escolher, mas os amigos , sim. Nasci e cresci sem um irmão, quaisquer que sejam as razões para isso. Hoje me vejo na possibilidade de fazer algo que ninguém mais pode: eu escolho ter um irmão. Escolho porque sei que é difícil achar alguém tão parecido comigo e ter certeza de que as similaridades são verdadeiras. Escolho porque é muito raro poder gostar da família não pela genética, pelo passado comum ou pelas circunstâncias. Escolho porque nunca reclamei por não ter irmãos. Escolho porque não me importam os erros e os acertos de quem me trouxe ao mundo. Escolho porque sinto a necessidade de escolher.
E mesmo que essa escolha seja uma coisa silenciosa, sutil e talvez até ingênua, para mim ela significa muito.
Independente do jeito que você lida com tudo isso, quero deixar claro que você tem uma irmã mais nova que pretende continuar te caçando e encurralando até quando puder. E que essa irmã geralmente precisa ser caçada e encurralada pra interagir com outras pessoas, mas misteriosamente sente que precisa interagir com você.
É claro que seria maravilhoso se você viesse aqui de vez em quando pra comer um churrasco, que fosse visitar as tias e os primos em Ribeirão comigo e que aparecesse em todas as fotos que eu tirasse com o nosso pai. Já imaginei isso muitas vezes, e hoje sei que, por melhor que a imagem seja, ela não mudaria nada do que sinto com relação a você. Nada disso nos faria mais ou menos irmãos. Nada pode nos fazer mais ou menos irmãos.
Agora é a hora em que eu teoricamente deveria te dar os parabéns pelo seu aniversário e desejar tudo de bom, mas isso eu poderia fazer com uma mensagenzinha de uma ou duas linhas. É mais que óbvio que esses parágrafos todos não são um “feliz aniversário”. Não sei direito o que são, mas espero que você goste de lê-los.
Da sua irmã biológica e socialmente verdadeira,
S.

domingo, 25 de abril de 2010

Domingo, 25 de Abril

Ela nunca olha para trás. Quando me dou conta de que fico, muitas vezes, esperando que ela olhe, percebo de vez quão estúpido sou para me deixar aborrecer por acontecimentos tão simplórios. Um olhar distante, uma palavra vaga, um esquivar, um suspiro... Minha insegurança anda tão faminta ultimamente que aceita se alimentar do que quer que seja. Mas por que ela não olha?
Ah, meu amigo, se soubesse quantas vezes desejei que ela me deixasse, quantas noites preferi morrer a ter de estar sob os holofotes que são aqueles olhos. Agora que ponho no papel vejo o quanto isso se pareceria com uma típica emanação de amor frustrado, se não fosse por aqueles olhos. São horrorosos.
Me desculpe se aqui pareço procurar um pretexto qualquer para desmerecê-la e vingar os sofrimentos que ela me causa. Não, de modo algum tento descê-la do pedestal no qual está, e no qual não foi preciso colocá-la. Parece que mesmo antes do nascimento está fadada a entorpecer os sentidos de qualquer infeliz que nela puser os olhos. Talvez o próprio diabo, incomodado com todo o magnetismo de sua alma, tratou dar-lhe um par de olhos negros e turvos através dos quais pudesse espiar o mundo dos vivos e amostrar àqueles que se atrevessem a olhá-los por muito tempo uma faísca de seus domínios no subsolo. Não minto, meu amigo, nem em hipótese me utilizo das metáforas e do arrebatamento para criar e impor um ponto que não corresponde à verdade. Aqueles dois olhos... São terríveis!

Desculpe-me por não continuar essa carta, de repente o relato dos olhos tenebrosos da moça fez com que não me pusesse bem. Entretanto, peço que o amigo não se compadeça de mim. Estou pagando por tudo aquilo de contente e de bom que me senti nos últimos tempos. Não, prefiro não desenvolver o pensamento. A experiência fornece o esclarecimento sobre os processos da vida e também a piedade para que não nos utilizemos dele para asfixiar as alegrias de outrem.
Pois bem, aqui despeço-me; fecharei antes as portas e também essas janelas. Desculpe se sôo um tanto infantil, com medo do escuro pela simples ausência de luz. É culpa daqueles olhos, ah, os malditos olhos. Só a lembrança do brilho acastanhado e satânico que adquirem quando encontram um canto escuro e sombrio no qual repousar, ah! Fico tomado de calafrios.

Adeus, J*******.